14 de mai. de 2008

Crónica de um ladrão (2/2)

Terminei a Faculdade. Fiz um percurso tortuoso entre vários empregos. Menti sobre as minhas reais qualificações, para fazer aquilo que mais gostava e sabia, roubar. O estilo de vida perigoso que levava continuava a atrair as mulheres. Talvez se sentissem atraídas pela fantasia de um ladrão vestido como um cavaleiro. Arranjei um emprego como conselheiro para a juventude de uma cidade em que as crianças tinham crescido na pobreza. Amiúde fazíamos diversas excursões juntos que eram grandes aventuras. Lembro-me de ensinar-lhes como roubar as lojas e eles mostravam-me como roubar automóveis, motos, ou como abrir uma porta de uma casa sem chave. Servia-mo-nos uns dos outros. Éramos cúmplices e mentores de alguns crimes, o que faria até o mais empedernido moralista rebolar-se de risos.

Mas com o avançar do tempo, já na casa dos trinta, o riso transformou-se em outra coisa. Eu estava começando a desenvolver determinadas complicações de saúde devido a um estado mental que me mantinha, continuamente, deprimido. Eu era um ladrão patológico. Mas a ironia é que o eu tinha alcançado, e tanto amava, também me enchia de vergonha. Uma voz profunda dentro de mim implorava-me para cessar com o meu estilo de vida. Resistia a essa voz, porque apesar de estar crescendo e apercebendo-me que a vida não era só violar a lei, era tudo tão mais fácil e cómodo. Eu estava perdendo fé em mim mesmo. Porque eu era capaz de roubar mais coisas que as pessoas comuns teriam de trabalhar imenso para um dias as comprar. Nunca tive de trabalhar muito, nem tenho de pensar em trabalho. A minha vida tornou-se uma natureza morta retrato de um homem em um longo casaco preto com pouca aspirações e uma vaga esperança de morrer.

Eu era o melhor ladrão na cidade. Não importava o que roubava, ser novamente apanhado era impossível. Eu caminhava para fora de uma loja com roupas ainda penduradas num cabide ou casaco novo e nunca levantar suspeitas. Eu tinha aprendido ao longo do tempo como transformar um roubo num truque mágico que era simplesmente impossível alguém perceber como o fazia. Roubava grandes plantas de lojas de jardinagem, cadeiras de couro de lojas mobiliário e até um computador portátil, do qual estou a escrever, de uma grande superfície. Durante muito tempo racionalizava estes meus crimes dizendo a mim mesmo que essas lojas e distribuidores andavam a roubar o público, por triplicar o custo do que pagavam por um qualquer produto. Quanto mais pensava mais justo me parecia o que fazia e mais razões tinha para continuar. Durante muito tempo este pensamento prevaleceu na minha alma como racional.

Mas, inesperadamente, um dia, os fantasmas de culpa e de vergonha começaram a assombrar-me com uma vingança. Quanto mais roubava mais culpa eu sentia. Doía-me a cabeça e o peito sempre que entrava numa loja para roubar. Comecei a desenvolver ataques de pânico. Mas recusava-me a aceitar que estes sintomas eram o resultado de minha vida como um ladrão. Como é que eu podia deixar de fazer uma coisa que eu gostava tanto? Uma coisa que eu sabia que era melhor do que qualquer outra pessoa e que agora era suposto ter de desistir para o meu bem físico.

Foram anos de luta e sofrimento para chegar a um ponto em que reconheci que roubar era, de facto, a fonte da minha dor. Antes de casar eu prometi à minha esposa que me aposentaria deste meu estilo de vida. Trabalharia imenso e compraria as nossas próprias coisas. Deitei o meu longo casaco preto para um contentor do lixo, nas traseiras da nossa casa. Mas aí instalou-se um longo Inverno de descontentamento. Eu salivava e estremecia quando entrava num mercado. O desejo de roubar foi mais forte do que a minha promessa. Às vezes eu ficava pálido, por falta de fluxo sanguíneo, e dizia à minha esposa que esperava por ela no carro. E perguntava-me porquê sofrer por algo que se vai transformar em lixo, poeira ou ferrugem? Tornei-me num homem que se recusa a roubar. Decidi deixar de sair de casa. Era a única forma de resistir. Agora sou um recluso, que se nega a participar nos caminhos do mundo. Faz alguns anos que eu não tenho roubado absolutamente nada. Os mesmos em que a minha casa é a minha cela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Marcadores